terça-feira, 20 de novembro de 2012

Vida, morte e (alguns) exageros
















 Especial por Sílvia Espeschit

Musical muito bem ensaiado e afinado, com canções de Chico Buarque, direção de Pedro Paulo Cava, em cartaz no Teatro da Cidade – onde o palco vez ou outra se confunde com as cadeiras da platéia – revisto e adaptado. Tal descrição do novo espetáculo de Cava, “Morte e Vida Severina”, poderia muito bem ser a mesma de Mulheres de Hollanda, última montagem sob seu comando, que de 2007 a 2009 ficou em cartaz no Teatro da Cidade, levando a assinatura do diretor já pela terceira vez. Por meio de uma fórmula que deu certo o dramaturgo trabalha novamente, sem muitas alterações estruturais, resgatando inclusive elementos idênticos aos da última peça produzida por ele: a sensualidade das suas mulheres de Hollanda, que até chega a reaparecer no inóspito cenário do sertão; um dejá vù em contexto deslocado, união de tons discrepantes, para quem assistiu à outra montagem.

Tal aridez do local onde se passa a peça, narrativa originada do longo auto Morte e Vida Severina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999), mostra-se crucial, praticamente personagem sine qua non da trajetória do retirante Severino rumo a um clima melhor para viver, igualmente destacada tanto no original quanto na adaptação. Semelhante também é o texto utilizado pelos atores, com exatidão de palavras do poema de Neto. A diferença é o ganho de vida e interpretação, principalmente na voz do ótimo protagonista, Severino (Tiago Colombini), e dos 14 demais atores em cena.

É com drama na medida certa que o espetáculo caminha, junto com o andar de Severino. Fome, mortes e desengano não são os únicos companheiros dele. Da primeira à última cena, o ator Luiz Gomide entra no palco para personificar a Morte, algo inexistente de forma tão palpável no original. Com maquiagem convincente, mérito da profissional Regina Mahia, aliada a trejeitos e aparições repentinas em meio aos espectadores, a Morte ganha consistência por meio de uma atuação precisa, cumprindo o papel de assombro e mal estar que se destina, para quem vê.

 












 

Contudo, a montagem erra a mão nos aspectos fúnebres embutidos ao cenário. Um caixão com um bebê e outro com um homem (um estranho boneco desproporcional) são dependurados escancaradamente nas paredes, como troféus da Morte. Eles contribuem para uma estética bizarra, destoante da poesia que as cores áridas e outros elementos interessantes do cenário, como fitas e uma tela formada por tiras, por onde entram e saem de cena os personagens, propõem-se. Idealizado de forma muito funcional, o cenário também possui alçapões de onde se tira caixões ou se enterra mais Severinos. No entanto, as aberturas grotescas no piso podem ser vistas desde o começo da narrativa, o que diminui o impacto, a surpresa do recurso em cena, quando esta se encontraria na iminência de acontecer. Inúmeras pinturas de Cândido Portinari sobre o tema da morte, projetadas na tela de tiras de acordo com a cena que se passa, também se incluem na categoria de boas ideias mal executadas. Acabam desfocando as atenções dos espectadores dos personagens que falam, e que por si só segurariam a cena tranquilamente. Em tempos nos quais a tecnologia pode ser utilizada como aliada na construção de narrativas cênicas, neste caso, especificamente, talvez fosse mais adequada uma exposição no foyer no teatro com as obras para melhor apreciação tanto da arte quanto da peça.
 
Se, por um lado, a aridez que se busca retratar no cenário se torna personagem, há também uma curiosa inversão: o violeiro cego vivido por Evaldo Nogueira entoa, em seu instrumento, todas as canções da peça, ao vivo, sem deixar o cenário uma vez sequer; essencial para conduzir musicalmente o espetáculo. O ator, cego de nascença como seu personagem, mostra grande talento e domínio do instrumento e das canções.
















O desenrolar da narrativa, que culmina na chegada de Severino ao Recife, região mais amena no que diz respeito à secura nordestina, também é acompanhada por alterações na luz (feita pelo próprio diretor) e nos figurinos (de Alexandre Colla). No lugar dos tons amarronzados, e nas vestimentas típicas do sofrido trabalhador nordestino, ganham cores mais alegres e vivas. E a sensação de alívio vai além do visual: o espectador pode sentir na pele a mudança do calor do sertão para o refresco do mar, efeito causado por um ar condicionado sincronizado com tal mudança de espaço.

Assim como no auto de João Cabral de Mello Neto, a peça termina com a promessa de dias melhores, quando os personagens se inspiram com uma nova vida que nasce. Como um musical televisivo, todos cantam, dançam, celebram – incluindo a Morte, que acaba de ganhar uma nova vida para liquidar no futuro. Com um público instigado a acompanhar batendo palmas, todos saem contentes e eufóricos do teatro, um final apoteótico como o já visto em Mulheres de Hollanda, que ameniza, aniquila o peso do tema central, sombrio e predominante.

sábado, 17 de novembro de 2012

Loki: A trajetória mitológica de Arnaldo Batista

















Na mitologia nórdica, Loki era o deus da trapaça e da travessura. Figura complexa, o deus marginal era considerado pouco confiável, geralmente por causar problemas de desordem aos outros, devido a suas artimanhas. Interessantemente, no fim os deuses em geral se beneficiavam das travessuras do underdog. Uma história que pode ser facilmente associada a um músico ícone do tropicalismo: Arnaldo Baptista.

“Loki”, Melhor Documentário no Festival do Rio de 2008 por voto popular e recém-lançado em DVD de direção e roteiro de Paulo Henrique Fontenelle reflete esse estigma mitológico vivido pelo ex-Mutante. Arnaldo Baptista se assemelha, já no nome do primeiro disco solo, à figura marginalizada nórdica, incompreendida, deslocada e marcada por uma vida nada convencional, mas que no fim, revolucionou a música brasileira e marcou o início da Tropicália.

De fato, o líder da banda que revolucionou o rock brasileiro, até então um rock primário, limitado às traduções italianas da Jovem Guarda, mostrou - junto à Rita, Sérgio, Liminha e Dinho - que o Brasil poderia produzir algo de alta densidade. Os Mutantes criaram um som autêntico à margem da produção artística-experimental do momento sem decodificações metaforicamente colocadas, que desestabilizou e transgrediu completamente a sociedade conservadora e moralista da época, em meio a uma ditadura militar. Um contexto social e político de violência que, no campo cultural, se transformou em ruptura de limites na busca de uma consciência crítica generalizada, a partir do abandono dos suportes tradicionais, criando novas condições experimentais. Auto-exposição, estratégia de ocupação dos meios de massa, de espectacularização e uma inter-relação estética. Todas características da Tropicália facilmente atribuídas a Arnaldo Baptista mostradas na produção de Fontenelle.

O slogan do filme (“O Artista. O Gênio. O Mutante”) já indica a modalidade afetiva da obra. Em um tom de homenagem, a articulação da narrativa do documentário buscou não polemizar a figura de Baptista, mas sacralizá-lo. Estruturado em torno de entrevistas de parentes, amigos e colegas de profissão, “Loki” tem um avançar histórico-cronológico extremamente didático em relação à carreira de Os Mutantes e do próprio Arnaldo, uma tendência do documentário contemporâneo, que descarta o narrador clássico ao intercalar vozes e entrevistas.

Os depoimentos expõem uma sinceridade acolhedora das atividades comportamentais “não condicionadas” do Loki brasileiro, típicas do tropicalismo segundo Hélio Oiticica. Entretanto, apesar da variedade de fontes, percebe-se que não há polifonia, fazendo com que o documentário de Paulo Henrique Fontenelle carregue um certo mito romântico de Arnaldo Baptista, que oscila entre o gênio e o louco. Uma espécie de legitimação do ex-Mutante, que pagou o preço da genialidade absoluta, algo que não é colocado em discussão. De novo, já claro logo no slogan.

Entre as falas monofônicas de figuras como Tom Zé, Nelson Motta, Gilberto Gil e Sean Lennon, percebe-se uma ausência e, ao mesmo tempo, uma presença fortíssima do que seria a voz mais destoante da trajetória do ex-Mutante: Rita Lee. Constantemente citada durante os 120 minutos, a cantora não quis conceder entrevista sobre sua vivência com Arnaldo Baptista, autorizando apenas os direitos de imagem e de som. Pedido negado, mas que, se concedido, provavelmente mudaria todo o tom de homenagem diluído na obra de Fontenelle, pela história conturbada.

Dessa forma, um ponto focado é o óbvio desconforto de Arnaldo em relação à Rita Lee. “O começo do fim” da banda com a saída de Rita por uma suposta divergência estética segundo a ex-Mutante abalou a pouca estabilidade - e sanidade - do músico. O primeiro disco solo após a separação - “Loki” - é adjetivado como emblemático, duro e profundo, mas ainda mais como uma confissão; um desabafo da dor de Arnaldo em relação à separação com Rita. Uma tristeza que “coloriu” Arnaldo Baptista, como ele mesmo coloca e que, no documentário, acaba humanizando aquele que começou como deus, como mito.

A alta densidade emocional dos discos solos, extremamente introspectivos e tristes, é resultado, segundos os depoimentos, de alguém que sofreu uma experiência traumática grande, mas em parte também de uma frustração proveniente de um artista “superautovalorizado”, por não compreender o porquê de não ser compreendido, principalmente pela mídia. Essa “maldade da mídia”, como foi colocada por Sérgio Dias, estigmatizou Baptista de maneira permanente e devastadora por um período. Posteriormente, a reinvenção expressiva de Arnaldo, que materializou esse estigma de “louco” em sua carreira, surgiria como uma resposta estética àqueles que o marcaram.

A “volta” de Os Mutantes em 2006 no Barbican Theatre em Londres, retrata o triunfo de Arnaldo após as adversidades de sua trajetória mitológica. Se José Carlos Capinan e Torquato Neto diziam que o tropicalismo é uma fase crítica que se esgota quando cumpre o seu papel, podemos dizer o mesmo de Arnaldo Baptista. Provocou o público, expôs disparidades e descompassos. Potencializou tensões. Arnaldo cumpriu seu papel e deixou ainda um legado. E, se analisado sob um contexto de expor as contribuições culturais e sociais do ex-Mutante, Paulo Henrique Fontenelle também cumpriu o seu com “Loki”.


O mágico tensionamento dos valores midiáticos

















O Teatro Mágico, grupo formado em 2003 em Osaco (SP), lançou ano passado o novo disco, completando sua trilogia. Como esperado, a trupe também manteve sua filosofia de “Músicas Para Baixar (MPB)”, em que permite o compartilhamento gratuito de arquivos musicais via internet, disponibilizando as faixas inéditas no próprio site. Dessa forma, originalmente trabalhando sem o apoio de gravadoras ou promoção midiática, o nome – e o tema – do novo CD era algo esperado.

A Sociedade do Espetáculo (2011) é um trabalho mais maduro em relação aos outros dois discos da trupe, buscando certa inovação estética musical ao reunir elementos cosmopolitas e localistas; uma fusão de ritmos que apresenta influências desde a vaneira sulista até o movimento musical do Clube da Esquina. Além disso, o trabalho melódico com mais de dez instrumentos, além de sonoplastia adequada, ajudam a compor a obra, produzida por Daniel Santiago e Hamilton de Holanda, um dos principais expoentes da música instrumental contemporânea brasileira. 

O mais interessante do disco, entretanto, não está nas melodias brandas, mas nas letras das músicas, que retornam, após oito anos, com o engajamento crítico proposto originalmente, até então esquecido no primeiro trabalho; Entrada para Raros (2003). Já no nome do terceiro disco – A Sociedade do Espetáculo –, percebe-se a proposta diferenciada da trupe ao pegar emprestado o título do livro do francês Guy Debord. As 19 faixas do grupo de Fernando Anitelli refletem os respingos, variáveis em sua proporção e explicitude, da influência filosófica de Debord. O escritor francês critica basicamente o modo capitalista de organização social, que separa e reifica – no aspecto fetichista – a vida humana. Nesse sentido, o espetáculo seria uma forma de dominação das massas; a imagem sendo o elemento organizador de uma sociedade de consumo, que inverte os conceitos de realidade e ficção.

No disco, o tensionamento debordiano pode ser facilmente identificado em “O que se perde enquanto os olhos piscam” (nona faixa), que critica de forma explícita a questão do consumo, colocando mais de 35 objetos do cotidiano, como “pé de meia, carteira, brinco e aparelho dental” em melodia acelerada para intensificar a ideia do fútil perecível. No fim, um questionamento que pode ser atribuído à ideia de massificação: “pra onde foi a versão original?” Seguindo essa linha, “Esse mundo não vale o mundo” (vigésima sétima faixa) também aborda (a partir de um trocadilho com a estrofe “o mundo não vale o mundo, meu bem” do poema “Cantiga de Enganar”, de Carlos Drummond de Andrade) a perda da originalidade, criticando a ditadura da beleza e os aspectos de uma sociedade repressiva e pseudo-homogênea: “Ter direito ao corpo e ao proceder, sem inquisição. A impostura cega, me surda e muda. A quem convêm esta hetero-intolerância branca, te faz refém”. 


A regravação de “Eu não sei na verdade quem eu sou” (sétima faixa), reforça a crítica social da trupe. A música faz referência à massificação do indivíduo e sua resistência a partir da diferenciação de sentidos, indagando: “por que a gente é desse jeito, criando conceito pra tudo que restou?” Sob um aspecto mais íntimo, a música “Da entrega” (quinta faixa) reflete as implicações da sociedade midiática sobre o sujeito, no sentido do forte individualismo narcisista, das relações superficiais e, como indica o título, da dificuldade da “entrega”. Ou seja, apresenta a vulnerabilidade do homem em uma proposta de ruptura com essa condição contemporânea. Este é o sentido mais diluído ao longo das 19 faixas, mesmo que menos perceptível quando comparado à questão materialista.

É interessante pensar também na resistência extremamente sutil presente no próprio gênero de “pop moderno” que a trupe propõe em A Sociedade do Espetáculo. O pop é considerado muitas vezes não um ritmo específico, mas um sistema de valores que envolve espetáculo no palco, moda visual e empatia entre o público juvenil. Características facilmente atribuídas a O Teatro Mágico, que conta com três artistas circenses para os shows, além das caracterizações típicas do membros. Isso num momento inicial, o que pode levar a uma interpretação equivocada sobre o trabalho desses dez músicos. 

Através da cultura pop – geralmente atribuída à uma arte adesista –, Fernando Anitelli tensiona esse sentido de uma música massificada ao compor letras que criticam não só os produtos midiáticos que ele também ajuda a produzir, mas a sociedade midiática como um todo. Dessa forma, o artista adapta de maneira louvável uma estratégia debordiana de resistência à alienação: a derivação da realidade espetacular a partir de uma percepção crítica e musicalizada sobre a própria época.



Fragmentos de um poema destruído

















Considerada uma das mais importantes autoras da literatura contemporânea brasileira, a paulista Hilda Hilst escreveu poesia, teatro, prosa, crônicas e criou uma obra diversificada em linguagem e conteúdo. Praticamente seis anos após a morte da autora, A Casa do Sol, adaptação do Asterisco Cia de Teatro, volta aos palcos belo-horizontinos para retratar em curta temporada a ironia e o deboche erótico típicos da obra de Hilda Hilst, recheada de intertextualidade. Os textos mais notáveis são “O caderno rosa de Lori Lamby”, “Cartas de um sedutor” (ambos da trilogia pornográfica), “A Obscena Senhora D” e o conto “Agda”, além de uma variedade de recorte de poemas e crônicas avulsos da escritora.   
           
A extensa ficha técnica, que inclui 15 profissionais – atores, músicos e artistas plásticos – já indica ao espectador atento a interação presente entre as diferentes áreas artísticas; uma proposta de alcançar a “multiplicidade” da escritora, os diversos gêneros e formas sendo a materialização da totalidade do ser. Dessa forma, A  Casa do Sol se trata de uma peça que não apresenta linearidade, de personagem ou de tema condutor. O trabalho dramatúrgico fragmentado de Arethuza Iemini, Elba Rocha, Sérgio Andrade e Wester de Castro mistura assuntos e estéticas divergentes, sendo exatamente esse embate o impulso do fluxo interessante e instigante do espetáculo. Em 70 minutos, as atrizes Arethuza Iemini e Elba Rocha fogem da ideia de uma montagem sob o recorte de vários textos, mas apresentam uma diversidade de linguagens, algo que pode ser relacionado ao aspecto contraditório e multilateral do homem hilstiano.

Entretanto, em meio ao visível equilíbrio entre as qualidades teatrais e poéticas da peça, é possível perceber três temas principais tratados no espetáculo dirigido por Wester de Castro: a relação entre o ser humano e a eminência da morte; a relação entre o ser humano e Deus; e a relação entre artistas em geral e mercado. 

Primeiramente, a posição voluntarista de Hilst marca forte presença em A Casa do Sol. Ou seja, demonstra um aspecto de sacrificar o herói, numa encenação do confronto entre a aceitação do sofrimento próprio e o da humanidade em geral, expondo a fragilidade da vida e do “horror” do destino do homem; a questão do tempo implacável, ou seja, da morte inevitável em Hilda. No caso, esta não é representada apenas pelo corpo que envelhece e morre, mas também através do amor finito e cruel. Na peça isso se dá de maneira mais explícita no momento em que as atrizes utilizam galhos para escrever a palavra “morte”, que logo se transforma em “sorte”. Na obra de Hilda Hilst, as personagens, ao escolher voluntariamente o fim que lhes é dado (a morte) alcançam a esperança (a sorte) de sobreviver à barbárie humana; a sorte sendo tanto o destino certo como a esperança.

Esse paradoxo de traços visivelmente cristãos existente na relação entre o ser humano e eminência da morte leva a outro eixo do espetáculo: a relação entre o homem e Deus. A busca por essa compreensão religiosa compõe um dos momentos de maior densidade dramática da peça, junto ao terceiro tema tratado: a relação entre artistas e mercado. As questões políticas e mercadológicas ligadas especificamente ao escritor traz cenas de “Cartas de um sedutor”, em que Arethuza Iemini encarna o autor desiludido. Em sua totalidade, a peça reflete um registro claro de uma situação geral de dominação, de repressão por parte da Igreja, do Estado e do moralismo de uma sociedade como um todo. Dessa forma, retrata os lugares comuns de maneira que produza no espectador contradição e certo desgosto ao desequilibrar estereótipos.

Desequilíbrio este apoiado na trilha sonora autoral de A Casa do Sol, um dos pontos mais marcantes do espetáculo pelo seu diferencial em ser executada ao vivo por seis músicos. Sérgio Andrade, o compositor, mostrou um trabalho profundamente ligado ao desenvolvimento dramatúrgico e estético da peça, completando as cenas de forma eloquente em suas oscilações entre drama e humor, entre os poemas líricos e os cruéis.

O cenário simples e rústico montado pelo grupo também atende às necessidades da peça, especialmente se relacionado à própria estrutura da Casa do Sol, residência de Hilda Hilst em Campinas, onde escreveu mais de 30 livros. Portanto, o espaço multiuso do Palladium, necessariamente disposto em passarela ou corredor – remetendo à alameda de entrada da chácara de Hilst –, mostrou-se uma escolha adequada por parte da equipe. 

Além disso, os elementos cênicos desenvolvidos em parceria com artistas visuais – a mesa em madeira de demolição, as velas, os galhos e a grande escultura inacabada em argila –, contribuem para a construção do discurso hilstiano, exatamente pelo ambiente que busca imitar subjetivamente o espaço de criação dos textos encenados. A escultura das costas masculina, por exemplo, é um dos objetos mais atraentes e significativos da peça, remetendo ambiguamente ao amor não correspondido, ao Deus grandioso e opressor e ao contato literal da figura feminina com esses dois sentidos; literal porque a escultura é manipulada em cena pelas atrizes.

O figurino de Lenir Rocha – também positivo –, em sua maioria composto por uma sobreposição de tecidos leves – um entendimento subjetivo do recorte feito de vários textos de Hilda – se modificava facilmente para compor as múltiplas personagens em cena. Assim, representou concomitantemente o erotismo e a religiosidade características das obras de Hilda Hilst, especialmente quando somados à iluminação de Fabrício Amador. Um vestido longo e “cristão”, por exemplo, logo revelava-se transparente à contraluz, se adequando de maneira louvável ao momento cênico ao oscilar entre esses aspectos conflitantes da autora paulista. 

Outro ponto interessante foi a transposição do figurino para a pele da atriz Elba Rocha, que, em suas coxas, continha palavras-chaves da obra de Hilst escritas de forma circular, como “Deus”, “morte” e “gozo”. Uma indicativa sutil de sua narrativa e, principalmente, de seu tempo cíclico.

São as sutilezas, aliás, que mais impressionam. Isto é, pela intensidade e pelo detalhismo com o qual simbolismos são expressados cenicamente. O emprego das artes plásticas, por exemplo, presentes de forma mais perceptível no cenário, influencia positivamente na encenação do texto, a partir do trabalho corporal das atrizes. Ou seja, há uma referência no movimento a obras clássicas, como “O Êxtase de Santa Teresa”, escultura barroca de Gian Lorenzo Bernini, que ilustra a invasão do divino no corpo terreno; o contato com Deus tratado por Hilda Hilst, de forma teatral. A pintura – também barroca – “Vênus olhando-se ao espelho” de Diego Velázquez também é representada, no que diz respeito à irônica humanização de Vênus, deusa do amor; facilmente associado ao discurso hilstiano.

Com isso, o espectador vive em 70 minutos uma parte do que Hilda Hilst parece ter compreendido em sua Casa do Sol: o poeta destrói o ser humano. E vice-versa.

O fantástico desamparo da condição humana


Dirigido por Yara de Novaes e adaptado por Silvia Gomez, “O Amor e Outros Estranhos Rumores” se salva de outros espetáculos resultantes de uma infeliz tradução para o teatro, revelando uma preservação da integralidade dos três contos originais de Murilo Rubião – inclusive em termos de narrativa circular –, sendo estes encenados praticamente na íntegra. Dessa forma, a peça coloca os conflitos originários da própria realidade a partir de uma linguagem poética que não só expõe as insatisfações humanas, mas assume um caráter revelador e crítico do absurdo dos relacionamentos frágeis e, especialmente, do amor.

Murilo Rubião (1916-1991)  foi um jornalista e contista mineiro, natural de Carmo de Minas. Suas obras são vistas como a mais significativa manifestação da literatura fantástica no Brasil, sendo pertencentes à mesma escola literária das décadas de 1960 e 1970 de Gabriel García Marques e José Luís Borges, considerada a “resposta” latino-americana à literatura fantástica europeia. O movimento tem como característica a presença de elementos inusitados percebidos como parte da “normalidade” pelas personagens junto à presença de uma percepção crítica da realidade, narrada em um tempo distorcido e cíclico. No caso específico de Rubião suas “preferências” pela solidão e seu “sincero apreço pela espécie humana”, como mesmo coloca em seu auto-retrato, se refletem em seus textos, causando certo incômodo, provocado pela mensagem passada sobre o absurdo da vida humana. Absurdo este explícito na peça montada no SESC Palladium na última sexta-feira.

A peça se inicia com um encontro inesperado entre os personagens masculinos dos contos encenados: “Memórias do Contabilista Pedro Inácio”, “Três Nomes para Godofredo” e “Bárbara”. Aparentemente em uma estação de trem, os três homens – vividos por Débora Falabella (foto), Maurício de Barros e Rodolfo Vaz – possuem bilhetes de passagens em branco, faltando data, horário e destino. No alvoroço de descobrir como sair daquele lugar ao perguntar incessantemente para a personagem híbrida de Priscila Jorge, acabam revelando suas angústias. O que une esses três contos é exatamente esse desnorteamento em relação aos bilhetes em branco, uma referência sutil a “O Convidado”, também do contista mineiro, em que a personagem recebe um convite em branco para uma festa, sem data, horário e local, impossibilitado também de desvincular-se da situação; no caso a condição humana. O tema central, explícito logo no título da peça, também amarra os contos escolhidos pelo grupo: o amor. 

A transição entre as cenas se dá principalmente pelo cenário, que se adapta de acordo com as necessidades do conto a ser encenado. Interessantemente, nesse contexto a figura antropozoomórfica (com corpo de homem e cabeça de coelho) vivida por Jorge, uma referência ao coelho cinzento do conto “Teleco, o Coelhinho” – também de Rubião –, transita entre as demais cenas, reforçando a ideia de desnorteamento trabalhado durante os outros contos, mas de maneira mais explícita no primeiro ato e na cena final do espetáculo. Esse sentido de desnorteamento pode ser facilmente ligado ao equilíbrio entre o poético e o fantástico, onde as personagens não se definem claramente como indivíduos singulares, devido à questão morfológica, uma característica do gênero fantástico que faz com que Rubião tenha uma semelhança estética com o autor tcheco Franz Kafka, incluindo a questão inusitada da burocracia e do tom soturno e irônico do homem sem saída. Ou seja, apresentam a falta de valor do homem amargurado na existência de não encontrar espaço na sociedade; uma metáfora do absurdo da condição humana.

Outro aspecto narrativo que valida esse estado da personagem é o cenário, simples, mas muito interessante pela sua versatilidade. Composto por seis portas, uma variedade de janelas, frestas e cadeiras azuis, a criação de André Cortez demonstra a importância do espaço não só na construção da narrativa, mas também na evidenciação da presença do fantástico na peça. A forma como o cenário – e também seu casamento adequado à iluminação de Fabio Retti – se adaptam às metamorfoses psicológicas das personagens, contribuem positivamente para ilustrar ao espectador disperso as transformações da história a partir da reconstrução espacial, que assume constantemente múltiplas formas inquietas, de restaurantes a oceanos; uma materialização do realismo mágico. Além disso, o espaço contribui também para enfatizar a incerteza dos contos de Rubião, típica das narrativas fantásticas, em que o inesperado intervém na normalidade dos fatos, provocando uma ruptura, um incômodo. Assim, acaba por instigar o espectador em relação ao próximo objeto ou ator que sairá de alguma parte da parede camuflada.

Os figurinos de Fábio Namatame também ajudam de forma significativa a plateia a visualizar esse processo comum a todo ser humano, principalmente no que se refere às figuras femininas, que, nos textos de Rubião são geralmente resumidas ao aspecto físico. Com exceção do contabilista Pedro Inácio, encenado por Falabella, as outras personagens vividas pela atriz – como as esposas de Godofredo e a megalomaníaca Bárbara – dependem essencialmente do figurino para se diferenciarem no palco. Namatame se destaca especialmente em Bárbara, que engorda literalmente à proporção de seus infindáveis desejos, sua roupa inflando brilhantemente com a ajuda de um tubo de ar.

A interação com a plateia é outro ponto interessante do espetáculo. A quebra parcial (parcial porque os atores permanecem no palco) da quarta parede do dramaturgo alemão Bertold Brecht capta efetivamente a atenção do público, contribuíndo para um melhor entendimento da obra complexa do escritor mineiro e, possivelmente, incomodando o espectador a partir do diálogo direto. Ou seja, ao longo dos três contos, a narração original em primeira pessoa de Rubião permanece, permitindo “cacos” no texto em que o ator faz menção diretamente ao público. Dessa forma, em todo momento o indivíduo acaba tocado involuntariamente pelo absurdo de pelo menos três personagens murilianos. 

Na cena inicial Pedro Inácio, Godofredo e o marido de Bárbara indagam para onde irão, visto os bilhetes em branco, sem referência alguma ao destino final. No último ato, o coelho híbrido, até então o condutor das personagens pelas suas angústias individuais, retira sua máscara, revelando ser apenas mais um homem desamparado como os outros. Ao invés do desvendamento do mistério, a peça, assim como os contos de Rubião, deixa o final aberto para que o indivíduo deduza e interprete o final, geralmente implícito.

Cavalo de Tróia: Sobre Nós




















Oscar Wilde dizia que a vida imita a arte mais do que a arte imita a vida. Entretanto, se o escritor irlandês estivesse vivo para assistir ao espetáculo Sobre Nós, da Uma Companhia de Teatro, ficaria em dúvida sobre sua afirmação. A peça, baseada exclusivamente em histórias contadas por integrantes da plateia, responde à essa pergunta clássica, em improviso, com a encenação de trechos da vida de cinco pessoas aleatórias.

Dirigido por Mariana Muniz, Sobre Nós recolhe essas histórias dos espectadores minutos antes do início do espetáculo. Enquanto o público se acomoda na plateia, o elenco composto por Diogo Horta, Hortência Maia, Mariana Vasconcelos e os atores convidados Frederico Bottrel (foto) e Flávia Almeida se reúnem no palco com os técnicos de som e luz – Pedro Rabello e Bernardo Gondim, respectivamente – para escolher as histórias e a forma como serão encenadas junto à iluminação e trilha sonora – também, logicamente, improvisadas.

Apesar de se esperar alguma desorganização no que diz respeito à estruturação das cenas, percebe-se que a improvisação se trata de um modelo pré-determinado: três histórias longas divididas – como uma boa redação de colégio –, em três atos de princípio, meio e fim, alternados entre as demais narrativas, mas seguindo a mesma ordem cronológica. O desfecho da história se estende a uma explicação do ator sobre o acontecimento; um pedido necessário frente à encenação confusa de um caso relativamente simples, que passa por uma desconstrução e infeliz releitura em três partes. A variedade de elementos cênicos presentes na coxia, assim como as três araras de figurinos à espera do inesperado, são, em certos momentos, visíveis ao público por uma tela, transparente ou não, de acordo com a iluminação.

Na noite de 30 de setembro, as histórias escolhidas foram: uma mulher com problemas conjugais que tenta se matar com veneno de rato, mas não obtém sucesso; dois irmãos, que saem de Paracatu (MG) para estudar em Belo Horizonte, recebem a notícia de que a mãe está morrendo e não conseguem chegar a tempo no enterro na cidade, a 500 km da capital; e uma menina que, pulando corda na rua, cai e é levada desnecessariamente ao hospital por uma ambulância que passava por ali. A família, alarmada pelo sensacionalismo dos médicos, desespera-se e começa a rezar uma novena. Em meio a isso, o grupo joga com dois monólogos curtos - e surpreendentemente mórbidos - de alta densidade dramática, também sobre suicídio e morte.

Drama e comédia, mas não necessariamente um espetáculo tragicômico. Contudo, é exatamente a oscilação entre esses dois gêneros que diferencia Sobre Nós dos demais espetáculos de improviso, incluído aqueles produzidos anteriormente pela mesma companhia de teatro, como Match de Improvisação e Improcedente, peças “sempre inéditas” no quesito de contexto, mas não de gênero, “sempre comédia”. A inexperiência dos cinco atores com o drama transparece na atuação, dando um tom caricatural a essas histórias que envolvem temas sérios e sem absolutamente nenhum teor de humor. No entanto, a plateia – cocriadora do texto – aparenta indiferença em relação à forma cômica com que suas histórias são representadas; e riem da desgraça alheia, literalmente.

A proposta, entretanto, é ousada. Sobre Nós é uma peça relativamente comum no cenário teatral, pois se encaixa facilmente nos parâmetros de um espetáculo dito “comercial”. Apesar disso, a ideia de Mariana Muniz se sobrepõe às outras no momento em que explicita aquilo mais característico do teatro: o processo contínuo de construção. O estilo interativo da peça pela participação efetiva do espectador no remodelamento do produto final é interessante, mas extremamente arriscado. Em um espetáculo comum, com texto já determinado, essa interação se dá em escala menor e, caso não haja uma resposta esperada, a peça segue normalmente. No caso de Sobre Nós, a participação do público é determinante para que o espetáculo se desenvolva. Assim, a obra de Mariana Muniz depende inteiramente não só da habilidade de improviso e da capacidade de criação dos atores, mas da disposição de boas histórias. 
















Essa dependência na boa vontade de Nêmesis e sua roda da fortuna é algo que causa dúvida no espectador menos cético em relação à autenticidade da improvisação. A equipe tampouco é ingênua e admite que, em alguns momentos, as histórias do público misturam-se aos relatos dos próprios atores, salvando o fragmentado jogo dramatúrgico da escassez de boas histórias.

Entretanto, essa relação entre a realidade e a construção ficcional não está explícita na encenação. As narrativas, encenadas de maneira fragmentada, mostram-se no palco um produto extremamente achatado do entretenimento, fantasiado com o pouco drama envolvido nas histórias, numa tentativa falhada de fazer transparecer o lúdico. Assim, apesar do esforço de desligar-se de uma forma hegemônica do teatro contemporâneo, Sobre Nós não provoca um tensionamento crítico no espectador acerca daquele fragmento de realidade reproduzida, buscando apenas submergir o sujeito em suas próprias emoções despertadas pela peça: compaixão, tristeza e histeria.

Essa ideia de provocar uma sensação no espectador se mostra de maneira clara na escolha dos casos a serem encenados. Não basta ser inusitado, é preciso também haver uma possibilidade de explorá-lo de uma maneira que cause um efeito prescrito e fechado. Pelo que foi visto nessa noite, quem sabe numa próxima. Afinal, é impossível uma apresentação ser exatamente igual à anterior, ainda mais neste espetáculo.