Especial por Sílvia Espeschit
Musical muito bem ensaiado e afinado, com canções de Chico Buarque, direção
de Pedro Paulo Cava, em cartaz no Teatro da Cidade – onde o palco vez ou outra
se confunde com as cadeiras da platéia – revisto e adaptado. Tal descrição do
novo espetáculo de Cava, “Morte e Vida Severina”, poderia muito bem ser a mesma
de Mulheres de Hollanda, última montagem sob seu comando, que de 2007 a 2009 ficou em cartaz
no Teatro da Cidade, levando a assinatura do diretor já pela terceira vez. Por
meio de uma fórmula que deu certo o dramaturgo trabalha novamente, sem muitas
alterações estruturais, resgatando inclusive elementos idênticos aos da última
peça produzida por ele: a sensualidade das suas mulheres de Hollanda, que até
chega a reaparecer no inóspito cenário do sertão; um dejá vù em contexto
deslocado, união de tons discrepantes, para quem assistiu à outra montagem.
Tal aridez do local onde se passa a peça, narrativa originada do longo
auto Morte e Vida Severina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920 –
1999), mostra-se crucial, praticamente personagem sine qua non da trajetória do
retirante Severino rumo a um clima melhor para viver, igualmente destacada
tanto no original quanto na adaptação. Semelhante também é o texto utilizado
pelos atores, com exatidão de palavras do poema de Neto. A diferença é o ganho
de vida e interpretação, principalmente na voz do ótimo protagonista, Severino
(Tiago Colombini), e dos 14 demais atores em cena.
É
com drama na medida certa que o espetáculo caminha, junto com o andar de
Severino. Fome, mortes e desengano não são os únicos companheiros dele. Da
primeira à última cena, o ator Luiz Gomide entra no palco para personificar a
Morte, algo inexistente de forma tão palpável no original. Com maquiagem
convincente, mérito da profissional Regina Mahia, aliada a trejeitos e aparições
repentinas em meio aos espectadores, a Morte ganha consistência por meio de uma
atuação precisa, cumprindo o papel de assombro e mal estar que se destina, para
quem vê.
Contudo,
a montagem erra a mão nos aspectos fúnebres embutidos ao cenário. Um caixão com
um bebê e outro com um homem (um estranho boneco desproporcional) são
dependurados escancaradamente nas paredes, como troféus da Morte. Eles
contribuem para uma estética bizarra, destoante da poesia que as cores áridas e
outros elementos interessantes do cenário, como fitas e uma tela formada por
tiras, por onde entram e saem de cena os personagens, propõem-se. Idealizado de
forma muito funcional, o cenário também possui alçapões de onde se tira caixões
ou se enterra mais Severinos. No entanto, as aberturas grotescas no piso podem
ser vistas desde o começo da narrativa, o que diminui o impacto, a surpresa do
recurso em cena, quando esta se encontraria na iminência de acontecer. Inúmeras
pinturas de Cândido Portinari sobre o tema da morte, projetadas na tela de
tiras de acordo com a cena que se passa, também se incluem na categoria de boas
ideias mal executadas. Acabam desfocando as atenções dos espectadores dos
personagens que falam, e que por si só segurariam a cena tranquilamente. Em
tempos nos quais a tecnologia pode ser utilizada como aliada na construção de
narrativas cênicas, neste caso, especificamente, talvez fosse mais adequada uma
exposição no foyer no teatro com as obras para melhor apreciação tanto da arte
quanto da peça.
Se,
por um lado, a aridez que se busca retratar no cenário se torna personagem, há
também uma curiosa inversão: o violeiro cego vivido por Evaldo Nogueira entoa,
em seu instrumento, todas as canções da peça, ao vivo, sem deixar o cenário uma
vez sequer; essencial para conduzir musicalmente o espetáculo. O ator, cego de
nascença como seu personagem, mostra grande talento e domínio do instrumento e
das canções.
O
desenrolar da narrativa, que culmina na chegada de Severino ao Recife, região
mais amena no que diz respeito à secura nordestina, também é acompanhada por
alterações na luz (feita pelo próprio diretor) e nos figurinos (de Alexandre
Colla). No lugar dos tons amarronzados, e nas vestimentas típicas do sofrido
trabalhador nordestino, ganham cores mais alegres e vivas. E a sensação de alívio
vai além do visual: o espectador pode sentir na pele a mudança do calor do sertão
para o refresco do mar, efeito causado por um ar condicionado sincronizado com
tal mudança de espaço.
Assim
como no auto de João Cabral de Mello Neto, a peça termina com a promessa de
dias melhores, quando os personagens se inspiram com uma nova vida que nasce. Como
um musical televisivo, todos cantam, dançam, celebram – incluindo a Morte, que
acaba de ganhar uma nova vida para liquidar no futuro. Com um público instigado
a acompanhar batendo palmas, todos saem contentes e eufóricos do teatro, um
final apoteótico como o já visto em Mulheres de Hollanda, que ameniza, aniquila
o peso do tema central, sombrio e predominante.



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