terça-feira, 20 de novembro de 2012

Vida, morte e (alguns) exageros
















 Especial por Sílvia Espeschit

Musical muito bem ensaiado e afinado, com canções de Chico Buarque, direção de Pedro Paulo Cava, em cartaz no Teatro da Cidade – onde o palco vez ou outra se confunde com as cadeiras da platéia – revisto e adaptado. Tal descrição do novo espetáculo de Cava, “Morte e Vida Severina”, poderia muito bem ser a mesma de Mulheres de Hollanda, última montagem sob seu comando, que de 2007 a 2009 ficou em cartaz no Teatro da Cidade, levando a assinatura do diretor já pela terceira vez. Por meio de uma fórmula que deu certo o dramaturgo trabalha novamente, sem muitas alterações estruturais, resgatando inclusive elementos idênticos aos da última peça produzida por ele: a sensualidade das suas mulheres de Hollanda, que até chega a reaparecer no inóspito cenário do sertão; um dejá vù em contexto deslocado, união de tons discrepantes, para quem assistiu à outra montagem.

Tal aridez do local onde se passa a peça, narrativa originada do longo auto Morte e Vida Severina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999), mostra-se crucial, praticamente personagem sine qua non da trajetória do retirante Severino rumo a um clima melhor para viver, igualmente destacada tanto no original quanto na adaptação. Semelhante também é o texto utilizado pelos atores, com exatidão de palavras do poema de Neto. A diferença é o ganho de vida e interpretação, principalmente na voz do ótimo protagonista, Severino (Tiago Colombini), e dos 14 demais atores em cena.

É com drama na medida certa que o espetáculo caminha, junto com o andar de Severino. Fome, mortes e desengano não são os únicos companheiros dele. Da primeira à última cena, o ator Luiz Gomide entra no palco para personificar a Morte, algo inexistente de forma tão palpável no original. Com maquiagem convincente, mérito da profissional Regina Mahia, aliada a trejeitos e aparições repentinas em meio aos espectadores, a Morte ganha consistência por meio de uma atuação precisa, cumprindo o papel de assombro e mal estar que se destina, para quem vê.

 












 

Contudo, a montagem erra a mão nos aspectos fúnebres embutidos ao cenário. Um caixão com um bebê e outro com um homem (um estranho boneco desproporcional) são dependurados escancaradamente nas paredes, como troféus da Morte. Eles contribuem para uma estética bizarra, destoante da poesia que as cores áridas e outros elementos interessantes do cenário, como fitas e uma tela formada por tiras, por onde entram e saem de cena os personagens, propõem-se. Idealizado de forma muito funcional, o cenário também possui alçapões de onde se tira caixões ou se enterra mais Severinos. No entanto, as aberturas grotescas no piso podem ser vistas desde o começo da narrativa, o que diminui o impacto, a surpresa do recurso em cena, quando esta se encontraria na iminência de acontecer. Inúmeras pinturas de Cândido Portinari sobre o tema da morte, projetadas na tela de tiras de acordo com a cena que se passa, também se incluem na categoria de boas ideias mal executadas. Acabam desfocando as atenções dos espectadores dos personagens que falam, e que por si só segurariam a cena tranquilamente. Em tempos nos quais a tecnologia pode ser utilizada como aliada na construção de narrativas cênicas, neste caso, especificamente, talvez fosse mais adequada uma exposição no foyer no teatro com as obras para melhor apreciação tanto da arte quanto da peça.
 
Se, por um lado, a aridez que se busca retratar no cenário se torna personagem, há também uma curiosa inversão: o violeiro cego vivido por Evaldo Nogueira entoa, em seu instrumento, todas as canções da peça, ao vivo, sem deixar o cenário uma vez sequer; essencial para conduzir musicalmente o espetáculo. O ator, cego de nascença como seu personagem, mostra grande talento e domínio do instrumento e das canções.
















O desenrolar da narrativa, que culmina na chegada de Severino ao Recife, região mais amena no que diz respeito à secura nordestina, também é acompanhada por alterações na luz (feita pelo próprio diretor) e nos figurinos (de Alexandre Colla). No lugar dos tons amarronzados, e nas vestimentas típicas do sofrido trabalhador nordestino, ganham cores mais alegres e vivas. E a sensação de alívio vai além do visual: o espectador pode sentir na pele a mudança do calor do sertão para o refresco do mar, efeito causado por um ar condicionado sincronizado com tal mudança de espaço.

Assim como no auto de João Cabral de Mello Neto, a peça termina com a promessa de dias melhores, quando os personagens se inspiram com uma nova vida que nasce. Como um musical televisivo, todos cantam, dançam, celebram – incluindo a Morte, que acaba de ganhar uma nova vida para liquidar no futuro. Com um público instigado a acompanhar batendo palmas, todos saem contentes e eufóricos do teatro, um final apoteótico como o já visto em Mulheres de Hollanda, que ameniza, aniquila o peso do tema central, sombrio e predominante.

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