sábado, 17 de novembro de 2012

Loki: A trajetória mitológica de Arnaldo Batista

















Na mitologia nórdica, Loki era o deus da trapaça e da travessura. Figura complexa, o deus marginal era considerado pouco confiável, geralmente por causar problemas de desordem aos outros, devido a suas artimanhas. Interessantemente, no fim os deuses em geral se beneficiavam das travessuras do underdog. Uma história que pode ser facilmente associada a um músico ícone do tropicalismo: Arnaldo Baptista.

“Loki”, Melhor Documentário no Festival do Rio de 2008 por voto popular e recém-lançado em DVD de direção e roteiro de Paulo Henrique Fontenelle reflete esse estigma mitológico vivido pelo ex-Mutante. Arnaldo Baptista se assemelha, já no nome do primeiro disco solo, à figura marginalizada nórdica, incompreendida, deslocada e marcada por uma vida nada convencional, mas que no fim, revolucionou a música brasileira e marcou o início da Tropicália.

De fato, o líder da banda que revolucionou o rock brasileiro, até então um rock primário, limitado às traduções italianas da Jovem Guarda, mostrou - junto à Rita, Sérgio, Liminha e Dinho - que o Brasil poderia produzir algo de alta densidade. Os Mutantes criaram um som autêntico à margem da produção artística-experimental do momento sem decodificações metaforicamente colocadas, que desestabilizou e transgrediu completamente a sociedade conservadora e moralista da época, em meio a uma ditadura militar. Um contexto social e político de violência que, no campo cultural, se transformou em ruptura de limites na busca de uma consciência crítica generalizada, a partir do abandono dos suportes tradicionais, criando novas condições experimentais. Auto-exposição, estratégia de ocupação dos meios de massa, de espectacularização e uma inter-relação estética. Todas características da Tropicália facilmente atribuídas a Arnaldo Baptista mostradas na produção de Fontenelle.

O slogan do filme (“O Artista. O Gênio. O Mutante”) já indica a modalidade afetiva da obra. Em um tom de homenagem, a articulação da narrativa do documentário buscou não polemizar a figura de Baptista, mas sacralizá-lo. Estruturado em torno de entrevistas de parentes, amigos e colegas de profissão, “Loki” tem um avançar histórico-cronológico extremamente didático em relação à carreira de Os Mutantes e do próprio Arnaldo, uma tendência do documentário contemporâneo, que descarta o narrador clássico ao intercalar vozes e entrevistas.

Os depoimentos expõem uma sinceridade acolhedora das atividades comportamentais “não condicionadas” do Loki brasileiro, típicas do tropicalismo segundo Hélio Oiticica. Entretanto, apesar da variedade de fontes, percebe-se que não há polifonia, fazendo com que o documentário de Paulo Henrique Fontenelle carregue um certo mito romântico de Arnaldo Baptista, que oscila entre o gênio e o louco. Uma espécie de legitimação do ex-Mutante, que pagou o preço da genialidade absoluta, algo que não é colocado em discussão. De novo, já claro logo no slogan.

Entre as falas monofônicas de figuras como Tom Zé, Nelson Motta, Gilberto Gil e Sean Lennon, percebe-se uma ausência e, ao mesmo tempo, uma presença fortíssima do que seria a voz mais destoante da trajetória do ex-Mutante: Rita Lee. Constantemente citada durante os 120 minutos, a cantora não quis conceder entrevista sobre sua vivência com Arnaldo Baptista, autorizando apenas os direitos de imagem e de som. Pedido negado, mas que, se concedido, provavelmente mudaria todo o tom de homenagem diluído na obra de Fontenelle, pela história conturbada.

Dessa forma, um ponto focado é o óbvio desconforto de Arnaldo em relação à Rita Lee. “O começo do fim” da banda com a saída de Rita por uma suposta divergência estética segundo a ex-Mutante abalou a pouca estabilidade - e sanidade - do músico. O primeiro disco solo após a separação - “Loki” - é adjetivado como emblemático, duro e profundo, mas ainda mais como uma confissão; um desabafo da dor de Arnaldo em relação à separação com Rita. Uma tristeza que “coloriu” Arnaldo Baptista, como ele mesmo coloca e que, no documentário, acaba humanizando aquele que começou como deus, como mito.

A alta densidade emocional dos discos solos, extremamente introspectivos e tristes, é resultado, segundos os depoimentos, de alguém que sofreu uma experiência traumática grande, mas em parte também de uma frustração proveniente de um artista “superautovalorizado”, por não compreender o porquê de não ser compreendido, principalmente pela mídia. Essa “maldade da mídia”, como foi colocada por Sérgio Dias, estigmatizou Baptista de maneira permanente e devastadora por um período. Posteriormente, a reinvenção expressiva de Arnaldo, que materializou esse estigma de “louco” em sua carreira, surgiria como uma resposta estética àqueles que o marcaram.

A “volta” de Os Mutantes em 2006 no Barbican Theatre em Londres, retrata o triunfo de Arnaldo após as adversidades de sua trajetória mitológica. Se José Carlos Capinan e Torquato Neto diziam que o tropicalismo é uma fase crítica que se esgota quando cumpre o seu papel, podemos dizer o mesmo de Arnaldo Baptista. Provocou o público, expôs disparidades e descompassos. Potencializou tensões. Arnaldo cumpriu seu papel e deixou ainda um legado. E, se analisado sob um contexto de expor as contribuições culturais e sociais do ex-Mutante, Paulo Henrique Fontenelle também cumpriu o seu com “Loki”.


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