Dirigido por Yara de Novaes e adaptado por Silvia Gomez, “O Amor e Outros Estranhos Rumores” se salva de outros espetáculos resultantes de uma infeliz tradução para o teatro, revelando uma preservação da integralidade dos três contos originais de Murilo Rubião – inclusive em termos de narrativa circular –, sendo estes encenados praticamente na íntegra. Dessa forma, a peça coloca os conflitos originários da própria realidade a partir de uma linguagem poética que não só expõe as insatisfações humanas, mas assume um caráter revelador e crítico do absurdo dos relacionamentos frágeis e, especialmente, do amor.
Murilo Rubião (1916-1991) foi um jornalista e contista mineiro, natural de Carmo de Minas. Suas obras são vistas como a mais significativa manifestação da literatura fantástica no Brasil, sendo pertencentes à mesma escola literária das décadas de 1960 e 1970 de Gabriel García Marques e José Luís Borges, considerada a “resposta” latino-americana à literatura fantástica europeia. O movimento tem como característica a presença de elementos inusitados percebidos como parte da “normalidade” pelas personagens junto à presença de uma percepção crítica da realidade, narrada em um tempo distorcido e cíclico. No caso específico de Rubião suas “preferências” pela solidão e seu “sincero apreço pela espécie humana”, como mesmo coloca em seu auto-retrato, se refletem em seus textos, causando certo incômodo, provocado pela mensagem passada sobre o absurdo da vida humana. Absurdo este explícito na peça montada no SESC Palladium na última sexta-feira.
A peça se inicia com um encontro inesperado entre os personagens masculinos dos contos encenados: “Memórias do Contabilista Pedro Inácio”, “Três Nomes para Godofredo” e “Bárbara”. Aparentemente em uma estação de trem, os três homens – vividos por Débora Falabella (foto), Maurício de Barros e Rodolfo Vaz – possuem bilhetes de passagens em branco, faltando data, horário e destino. No alvoroço de descobrir como sair daquele lugar ao perguntar incessantemente para a personagem híbrida de Priscila Jorge, acabam revelando suas angústias. O que une esses três contos é exatamente esse desnorteamento em relação aos bilhetes em branco, uma referência sutil a “O Convidado”, também do contista mineiro, em que a personagem recebe um convite em branco para uma festa, sem data, horário e local, impossibilitado também de desvincular-se da situação; no caso a condição humana. O tema central, explícito logo no título da peça, também amarra os contos escolhidos pelo grupo: o amor.
A transição entre as cenas se dá principalmente pelo cenário, que se adapta de acordo com as necessidades do conto a ser encenado. Interessantemente, nesse contexto a figura antropozoomórfica (com corpo de homem e cabeça de coelho) vivida por Jorge, uma referência ao coelho cinzento do conto “Teleco, o Coelhinho” – também de Rubião –, transita entre as demais cenas, reforçando a ideia de desnorteamento trabalhado durante os outros contos, mas de maneira mais explícita no primeiro ato e na cena final do espetáculo. Esse sentido de desnorteamento pode ser facilmente ligado ao equilíbrio entre o poético e o fantástico, onde as personagens não se definem claramente como indivíduos singulares, devido à questão morfológica, uma característica do gênero fantástico que faz com que Rubião tenha uma semelhança estética com o autor tcheco Franz Kafka, incluindo a questão inusitada da burocracia e do tom soturno e irônico do homem sem saída. Ou seja, apresentam a falta de valor do homem amargurado na existência de não encontrar espaço na sociedade; uma metáfora do absurdo da condição humana.
Outro aspecto narrativo que valida esse estado da personagem é o cenário, simples, mas muito interessante pela sua versatilidade. Composto por seis portas, uma variedade de janelas, frestas e cadeiras azuis, a criação de André Cortez demonstra a importância do espaço não só na construção da narrativa, mas também na evidenciação da presença do fantástico na peça. A forma como o cenário – e também seu casamento adequado à iluminação de Fabio Retti – se adaptam às metamorfoses psicológicas das personagens, contribuem positivamente para ilustrar ao espectador disperso as transformações da história a partir da reconstrução espacial, que assume constantemente múltiplas formas inquietas, de restaurantes a oceanos; uma materialização do realismo mágico. Além disso, o espaço contribui também para enfatizar a incerteza dos contos de Rubião, típica das narrativas fantásticas, em que o inesperado intervém na normalidade dos fatos, provocando uma ruptura, um incômodo. Assim, acaba por instigar o espectador em relação ao próximo objeto ou ator que sairá de alguma parte da parede camuflada.
Os figurinos de Fábio Namatame também ajudam de forma significativa a plateia a visualizar esse processo comum a todo ser humano, principalmente no que se refere às figuras femininas, que, nos textos de Rubião são geralmente resumidas ao aspecto físico. Com exceção do contabilista Pedro Inácio, encenado por Falabella, as outras personagens vividas pela atriz – como as esposas de Godofredo e a megalomaníaca Bárbara – dependem essencialmente do figurino para se diferenciarem no palco. Namatame se destaca especialmente em Bárbara, que engorda literalmente à proporção de seus infindáveis desejos, sua roupa inflando brilhantemente com a ajuda de um tubo de ar.
A interação com a plateia é outro ponto interessante do espetáculo. A quebra parcial (parcial porque os atores permanecem no palco) da quarta parede do dramaturgo alemão Bertold Brecht capta efetivamente a atenção do público, contribuíndo para um melhor entendimento da obra complexa do escritor mineiro e, possivelmente, incomodando o espectador a partir do diálogo direto. Ou seja, ao longo dos três contos, a narração original em primeira pessoa de Rubião permanece, permitindo “cacos” no texto em que o ator faz menção diretamente ao público. Dessa forma, em todo momento o indivíduo acaba tocado involuntariamente pelo absurdo de pelo menos três personagens murilianos.
Na cena inicial Pedro Inácio, Godofredo e o marido de Bárbara indagam para onde irão, visto os bilhetes em branco, sem referência alguma ao destino final. No último ato, o coelho híbrido, até então o condutor das personagens pelas suas angústias individuais, retira sua máscara, revelando ser apenas mais um homem desamparado como os outros. Ao invés do desvendamento do mistério, a peça, assim como os contos de Rubião, deixa o final aberto para que o indivíduo deduza e interprete o final, geralmente implícito.

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