Considerada uma das mais importantes autoras da literatura contemporânea brasileira, a paulista Hilda Hilst escreveu poesia, teatro, prosa, crônicas e criou uma obra diversificada em linguagem e conteúdo. Praticamente seis anos após a morte da autora, A Casa do Sol, adaptação do Asterisco Cia de Teatro, volta aos palcos belo-horizontinos para retratar em curta temporada a ironia e o deboche erótico típicos da obra de Hilda Hilst, recheada de intertextualidade. Os textos mais notáveis são “O caderno rosa de Lori Lamby”, “Cartas de um sedutor” (ambos da trilogia pornográfica), “A Obscena Senhora D” e o conto “Agda”, além de uma variedade de recorte de poemas e crônicas avulsos da escritora.
A extensa ficha técnica, que inclui 15 profissionais – atores, músicos e artistas plásticos – já indica ao espectador atento a interação presente entre as diferentes áreas artísticas; uma proposta de alcançar a “multiplicidade” da escritora, os diversos gêneros e formas sendo a materialização da totalidade do ser. Dessa forma, A Casa do Sol se trata de uma peça que não apresenta linearidade, de personagem ou de tema condutor. O trabalho dramatúrgico fragmentado de Arethuza Iemini, Elba Rocha, Sérgio Andrade e Wester de Castro mistura assuntos e estéticas divergentes, sendo exatamente esse embate o impulso do fluxo interessante e instigante do espetáculo. Em 70 minutos, as atrizes Arethuza Iemini e Elba Rocha fogem da ideia de uma montagem sob o recorte de vários textos, mas apresentam uma diversidade de linguagens, algo que pode ser relacionado ao aspecto contraditório e multilateral do homem hilstiano.
Entretanto, em meio ao visível equilíbrio entre as qualidades teatrais e poéticas da peça, é possível perceber três temas principais tratados no espetáculo dirigido por Wester de Castro: a relação entre o ser humano e a eminência da morte; a relação entre o ser humano e Deus; e a relação entre artistas em geral e mercado.
Primeiramente, a posição voluntarista de Hilst marca forte presença em A Casa do Sol. Ou seja, demonstra um aspecto de sacrificar o herói, numa encenação do confronto entre a aceitação do sofrimento próprio e o da humanidade em geral, expondo a fragilidade da vida e do “horror” do destino do homem; a questão do tempo implacável, ou seja, da morte inevitável em Hilda. No caso, esta não é representada apenas pelo corpo que envelhece e morre, mas também através do amor finito e cruel. Na peça isso se dá de maneira mais explícita no momento em que as atrizes utilizam galhos para escrever a palavra “morte”, que logo se transforma em “sorte”. Na obra de Hilda Hilst, as personagens, ao escolher voluntariamente o fim que lhes é dado (a morte) alcançam a esperança (a sorte) de sobreviver à barbárie humana; a sorte sendo tanto o destino certo como a esperança.
Esse paradoxo de traços visivelmente cristãos existente na relação entre o ser humano e eminência da morte leva a outro eixo do espetáculo: a relação entre o homem e Deus. A busca por essa compreensão religiosa compõe um dos momentos de maior densidade dramática da peça, junto ao terceiro tema tratado: a relação entre artistas e mercado. As questões políticas e mercadológicas ligadas especificamente ao escritor traz cenas de “Cartas de um sedutor”, em que Arethuza Iemini encarna o autor desiludido. Em sua totalidade, a peça reflete um registro claro de uma situação geral de dominação, de repressão por parte da Igreja, do Estado e do moralismo de uma sociedade como um todo. Dessa forma, retrata os lugares comuns de maneira que produza no espectador contradição e certo desgosto ao desequilibrar estereótipos.
Desequilíbrio este apoiado na trilha sonora autoral de A Casa do Sol, um dos pontos mais marcantes do espetáculo pelo seu diferencial em ser executada ao vivo por seis músicos. Sérgio Andrade, o compositor, mostrou um trabalho profundamente ligado ao desenvolvimento dramatúrgico e estético da peça, completando as cenas de forma eloquente em suas oscilações entre drama e humor, entre os poemas líricos e os cruéis.
O cenário simples e rústico montado pelo grupo também atende às necessidades da peça, especialmente se relacionado à própria estrutura da Casa do Sol, residência de Hilda Hilst em Campinas, onde escreveu mais de 30 livros. Portanto, o espaço multiuso do Palladium, necessariamente disposto em passarela ou corredor – remetendo à alameda de entrada da chácara de Hilst –, mostrou-se uma escolha adequada por parte da equipe.
Além disso, os elementos cênicos desenvolvidos em parceria com artistas visuais – a mesa em madeira de demolição, as velas, os galhos e a grande escultura inacabada em argila –, contribuem para a construção do discurso hilstiano, exatamente pelo ambiente que busca imitar subjetivamente o espaço de criação dos textos encenados. A escultura das costas masculina, por exemplo, é um dos objetos mais atraentes e significativos da peça, remetendo ambiguamente ao amor não correspondido, ao Deus grandioso e opressor e ao contato literal da figura feminina com esses dois sentidos; literal porque a escultura é manipulada em cena pelas atrizes.
O figurino de Lenir Rocha – também positivo –, em sua maioria composto por uma sobreposição de tecidos leves – um entendimento subjetivo do recorte feito de vários textos de Hilda – se modificava facilmente para compor as múltiplas personagens em cena. Assim, representou concomitantemente o erotismo e a religiosidade características das obras de Hilda Hilst, especialmente quando somados à iluminação de Fabrício Amador. Um vestido longo e “cristão”, por exemplo, logo revelava-se transparente à contraluz, se adequando de maneira louvável ao momento cênico ao oscilar entre esses aspectos conflitantes da autora paulista.
Outro ponto interessante foi a transposição do figurino para a pele da atriz Elba Rocha, que, em suas coxas, continha palavras-chaves da obra de Hilst escritas de forma circular, como “Deus”, “morte” e “gozo”. Uma indicativa sutil de sua narrativa e, principalmente, de seu tempo cíclico.
São as sutilezas, aliás, que mais impressionam. Isto é, pela intensidade e pelo detalhismo com o qual simbolismos são expressados cenicamente. O emprego das artes plásticas, por exemplo, presentes de forma mais perceptível no cenário, influencia positivamente na encenação do texto, a partir do trabalho corporal das atrizes. Ou seja, há uma referência no movimento a obras clássicas, como “O Êxtase de Santa Teresa”, escultura barroca de Gian Lorenzo Bernini, que ilustra a invasão do divino no corpo terreno; o contato com Deus tratado por Hilda Hilst, de forma teatral. A pintura – também barroca – “Vênus olhando-se ao espelho” de Diego Velázquez também é representada, no que diz respeito à irônica humanização de Vênus, deusa do amor; facilmente associado ao discurso hilstiano.
Com isso, o espectador vive em 70 minutos uma parte do que Hilda Hilst parece ter compreendido em sua Casa do Sol: o poeta destrói o ser humano. E vice-versa.

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